Os 3 objectos
Custa-me respirar o ar abafado do teu escritório. Ainda me custa, passados estes anos todos. A fotografia do teu pai em uniforme, gasta de tantos dedos lhe tocarem, continua cá. O pó dos anos agarrou-se na parte superior para ali ficar e não deixar ver a cara do teu pai. Queria-te dizer que o canto inferior direito foi rasgado pelas mãos inocentes da Benedita, mas o teu pai continua na sua pose austera e firme. Num papel sépia, na memória da objectiva, com a data que mal se lê e o carimbo do fotógrafo a azul. Caiu no outro dia, de dentro da usada edição de poemas de Pessoa. Essa bíblia que ainda tem o cheiro a couro da tua mala e as rugas e as marcas na ponta da página quando as dobravas para me irritar. É pequena, porque é uma edição de bolso. Do teu bolso, da tua vida. A capa já inexistente deixa ver a dedicatória “Desta Mensagem já não te livras.”. Lembras-te das muitas páginas com letras pequeninas serifadas, que me puseram a precisar de óculos? Custa-me respirar aqui. As pétalas dentro do livro já não têm cheiro, o teu cão de porcelana que sempre me fez arrepios até parece que perdeu o brilho. Está frio e poeirento. Um cocker spaniel dourado e algumas manchas pretas com ar plácido de bibelô. É o que ele é, um bibelô que nada conta, de coleira vermelha. Não ladra, não reconhece a fotografia do teu pai e nem tão pouco lê Pessoa.
Fecho a porta e deixo os teus objectos pousados, suspensos no tempo.
Fecho a porta e deixo os teus objectos pousados, suspensos no tempo.
2 Comments:
Depois disto, só me resta esperar pelo romance... Parabéns!!!
Obrigado! ;)
O romance ainda vai ter que esperar...ficam as pequenas histórias.
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