Pedro das minhas estantes...
ELA E SÓ ELA
Sabes o que ele me disse? Que aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela e acordas a pensar nela.
Eu já sabia, já te tinha dito, lembras-te?, eu já sabia mas não queria ter a certeza.
Foi assim. Telefonei ontem à hora do almoço lá para casa e a mãe, devia ser a mãe, era a mãe com certeza, disse-me
que ele ainda estava a dormir. Há uma data de dias que não o via, não podia mais. Peguei no carro e fui lá.
Quando cheguei, estava a tomar duche e tive de esperar um bocadinho no quarto dele. Na parede um poster a preto
e branco. No chão, a roupa da noite. Entrou silenciosamente. Estava lindo, tão lindo dentro do roupão azul escuro.
Nem imaginas como ele é lindo.
Foi tomar o pequeno almoço na cozinha e depois disse-me para voltar com ele lá para cima. Fechou a porta atrás
de nós mas não a fechou à chave, mas eu pensei de qualquer modo que ele me ia agarrar, beijar. Eu ainda só dormi
com ele duas vezes, mas devia ser proibido fazer amor assim. Agarrou-me por dentro, sabes? Devia ser proibido.
Uma pessoa não pode fazer nada.
Mas ele não me agarrou. Tomou um ar sério e disse-me para não ter medo e depois sorriu. Então começou a preparar
aquilo. Fiquei muda todo o tempo. Passavam-me coisas tão depressa pela cabeça que eu não conseguia pensar em nada. Não conseguia tirar os olhos daquilo.
Depois arrumou tudo e pôs um disco, como se nada fosse. Eu fiz de conta. Passado um bocadinho chegou um amigo dele,
o Tó. Beberam uma cerveja e depois o Tó foi-se embora. Ele voltou a fechar a porta e voltou a preparar aquilo e a fumar aquilo. Para atestar, disse, percebes? Eu não lhe disse nada. Ele gostava mais daquilo do que de mim. Muito mais, tive a certeza. Apeteceu-me chorar mas não chorei. Olhei o Ian Curtis que continuava no seu salto no poster e fiz como se tudo aquilo me fosse indiferente. Uma pessoa consegue.
Mas eu sei muito bem, eu é que lhe sou indiferente. Eu e tudo o resto. Menos aquilo. O que aquilo faz é tornar tudo o resto indiferente, sabes? O verdadeiro inferno.
Não me agarrou. Eu é que tive de o agarrar. Parecia um bebé a sorrir. E eu gosto tanto dele, merda. Despi-o e fiz-lhe amor
e foi então, logo a seguir, que ele me disse: "Sabes, aquilo é como a primeira namorada. Adormeces a pensar nela
e acordas a pensar nela."
Pedro Paixão
Viver todos os dias cansa, 95
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