8.7.08

"Subitamente, eu era o bode expiatório de uma sociedade em sistemática e obcecada busca de pretextos para abrir hostilidades..."

in, Coca-Cola Killer de António Victorino D'Almeida (capítulo IX, pág. 149)

3.7.08

De costas

Espeta. Assim. Devagarinho. Devagar para sentir os dentes a corroer-me por dentro, para me sentir no fio da navalha. Atira. Expõe. Explode. Pisa. Mas lentamente entra em mim, afiada. Afiada e afinada. Tocando cada corda do meu corpo num acorde pequenino, agudo, muito fino até sentir explodir pelas orelhas. Um tom acima do normal que de tão agudo ser se torna grave. Grave na carne, na pele, no sangue que escorre enquanto a navalha roda, torce e se contorce cá dentro.

Espeta. Assim. Devagar. Para que os sentidos tenham tempo de acordar e as velhas feridas de voltar a abrir. Espeta aí. Onde tu sabes que dói mais. Pendura-me no cabide e deixa-me lá a fazer tempo. Como um casaco velho que não vai embora para nos lembrarmos de outros tempos. Como o pó nas paredes em vez dos quadros.

Agora tira. Lentamente. Como quem abre o champanhe no fim da festa. Shhh! Já foi tudo embora, vamos abrir sem fazer barulho. Para que ninguém dê por nada e fiquemos com isto só para nós. Como uma vitória dentro de portas. Tira. Assim. Devagarinho. Para que me esvaia de culpa, de medo, de paranóia. Para no fim, morrer ao som de um tom acima. De um sustenido latente na minha cabeça.

Ana T. Ribeiro