26.6.06

Pedras da calçada

A cidade. A minha cidade. As minhas pedras da calçada que não choram, mas que lançam pregões com resposta na ponta da língua. Abre-se uma janela, sacode-se um tapete, fala-se do mal que se avizinha e olha-se o céu, sentindo o vento a rasar no cabelo. Ainda anda no ar o cheiro a pimentos e sardinhas assadas, da ressaca de S. João. Saio agora. Saio de cara lavada para a cidade que acaba de despertar.

22.6.06

O Futuro

Aos Domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos Domingos iremos ao jardim.
Diremos nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses-,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários

Reinaldo Teixeira

Pablo das tardes à soleira da porta...

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

21.6.06

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus

Eugénio de Andrade

19.6.06

A comprar

Depois de ter conseguido comprar um só livro na Irlanda, porque o dinheiro não deu para tudo e lá "tudo" é muito caro, o "Irish Ghost Stories", acho que é tempo de começar a comprar livros para os tempos de calor que se avizinham.


E nada melhor que Budapeste do inquietante, pelo menos para mim, Chico Buarque. Um livro para se ler com o coração, em dias solarengos com os pés descalços sentindo o chão do meu terraço.
Nunca vemos as coisas como elas são,
vemo-las como nós somos. - Anais Nin

A tua rua



(à minha mãe)

A tarde vai desaparecendo pela tua rua abaixo. E tu desces a tua rua, que é muito tua, muito nossa. Desenhando um risco imaginário, com a tua caneta, na parede enquanto a desces. Desces rua abaixo, mas sempre a subir. Sobes em cada nuvem que vai lambendo o céu. Comes chocolates. Só comes porcarias que te fazem mal aos dentes. E tens uns dentes tão bonitos.
Os teus caracóis que saltam enquanto desces a tua rua. A tua porta verde esperança. Verde dos sonhos de seres criança-menina. Eu, na mercearia, vejo-te chegar. Sei todos os teus passos, desde a escola até à tua porta, à tua rua. Os sonhos que levas na mochila, o teu lanche, quanto custa um chocolate, o quanto detestas cadernos de duas linhas, porque já sabes escrever muito bem. Eu sei tudo, mas prefiro inventar ainda mais enquanto desces a rua e te viras, antes de tocar à campainha.
E os teus olhos brilham. Brilham da cor da esperança, aos saltos, enquanto atravessas a tua rua olhando para os dois lados, e me chamas mamã.
®Anita

8.6.06

Dublin Writer's Festival



Eu vou estar lá! Prometo trazer literatura irlandesa da Feira do Livro para emprestar.

Fora deste Festival, espero conseguir ir ao Annual Pre-Bloomsday Walk, um passeio organizado pelo James Joyce Institute of Ireland, que abre com a leitura de um episódio do "Ulisses". E podemos levar o fato-de-banho (como se fosse possível apanhar bom tempo para estar ao sol) !!!!!

Espero é perceber o inglês deles.

Só para lembrar


Perdi o teu número. Perdi tudo o que havia a perder. Perdi o teu número, mas liguei-te hoje só para to dizer. Só para te lembrar que de um número escrito a caneta de feltro num papel devidamente reciclado, por si só, não é nada. O teu número é mais um no meio de tantos, mais um parecido com outros que tenho na gaveta. Mesmo assim, insisto em olhar para ele e fingir que o perdi.

7.6.06

Nuno Júdice - o herói da minha adolescência

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão.
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados.
Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus, do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

in «Poesia reunida 1967 - 2000», "A Partilha dos Mitos" [1982], Pref. Teresa Almeida, D. Quixote

Gosto e não gosto



Gosto de me sentar na tua cozinha. Cheirar cada frasco de condimentos de cada país que visitaste. Gosto de falar sobre o mundo que tens estampado nos olhos, enquanto te tiro a farinha do nariz. Gosto de tomar banho na tua imensa banheira. Não gosto de te ver partir. Gosto de te ver chegar com uma cor de pele sempre diferente. Gosto que tenhas cortado o cabelo. Gosto que leias para mim. Não gosto de subir as escadas da tua casa. Gosto dos teus cães e do teu irmão. Gosto de ti. Não gosto de estar longe de ti. Gosto de te encontrar por acaso. Não gosto de combinar coisas contigo. Gosto do teu número de telefone português. Nunca sei como ouvir a tua voz quando não estás cá. Gosto dos teus e-mails longos, e cheios de vida. Não gosto que demores, mas gosto que mantenhas o suspense. Gosto de saber que gostas de mim. Gosto quando chegas, e que partas como se chegasses.

6.6.06

O início é sempre complicado...